CÂMARA DE LOBOS - DICIONÁRIO COROGRÁFICO

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Artigo de Manuel Pedro Freitas sobre a história da Boca dos Namorados publicado no Jornal da Madeira de 25 de Janeiro de 1998

 

 

Boca dos Namorados

 

A Boca dos Namorados, constitui juntamente com a Boca da Corrida, a Quinta do Jardim da Serra, o Pico da Torre e o  Cabo Girão uma das mais importantes referências turísticas do concelho de Câmara de Lobos, isto naturalmente sem contar com a Eira do Serrado que apesar de não fazer parte do concelho deve a sua importância à soberba paisagem da freguesia do Curral das Freiras, que a partir dele se desfruta.
 

Até 5 de Julho de 1996, pertenceu a Boca dos Namorados ao Estreito de Câmara de Lobos, passando a partir dessa data com a criação da freguesia do Jardim da Serra a fazer parte desta nova freguesia, tal como de resto aconteceu com toda a zona alta do Estreito, onde se concentravam todas as suas potencialidades turísticas: Boca dos Namorados; Boca da Corrida e Quinta do Jardim da Serra.

 

A origem do nome
Ainda que a origem da sua denominação seja desconhecida, pelo menos nunca a encontramos referida de forma fundamentada, o poeta câmara-lobense Joaquim Pestana através de um dos seus escritos datados de 1879 e recordados por Nelson Veríssimo na revista Girão, para além de descrever o local dá-nos uma explicação curiosa a propósito do seu nome.
Segundo Joaquim Pestana a origem do epíteto Namorados é de poucos conhecida. Diz a tradição que para  ali viera um sujeito, por nome Pêro, que se enamorara duma linda menina chamada Ignez. Como Pêro não lhe pudesse falar a cada momento, em razão de viver separada por aquele abismo, fazia, qual outro Leandro, acordar aqueles vales com o doce nome de - Ignez! que sempre lhe era correspondido com o nome de - Pêro!
Acreditando-se ou não nesta explicação para a origem no nome baseada, segundo diz o poeta na tradição, a verdade ela é a única conhecida e, se não foi o namoro entre Pêro e Inês certamente que na sua base terá estado um sentimento idêntico que, de resto, se adapta perfeitamente ao local.

 

As panorâmicas desfrutadas
Desde a Boca dos Namorados podemos contemplar não só o Curral das Freiras visto pela sua parte sul, como também a baixa funchalense.
Ao descrever a Boca dos Namorados Joaquim Pestana diz que dali é admirável contemplar a nossos pés, como humilhado perante aquelas maravilhas da natureza, numa profundidade de 800 a 1:000 metros, o chão do Curral das Freiras, esmaltado de pequenas casas, cobertas, na maior parte, de palha de centeio, ou colmo, como por aqui lhe chamam.
Dizia ainda, em 1879 Joaquim Pestana que se subirmos ao grande monte que domina a Boca dos Namorados, teremos uma vista não menos majestosa  e surpreendente. Para sul, a distância talvez de 15 km descortina-se visivelmente a encantadora cidade do Funchal, embelezada pelo seu amplo porto[...]. Desta soberba eminência, a que dão o nome de Pico dos Bodes, mais aprazível se torna a imponente vista do Curral das Freiras. É impossível descrever-se a comoção que nos causa aquela ingente profundidade, e também dali é curioso ouvir a detonação dos morteiros disparados [por ocasião das festividades religiosas] no Chão do Curral. O som que nos parece de uma peça de grande calibre, repete-se pelo eco cinco, seis e mais vezes.

 

A importância turística da Boca dos Namorados
Ainda que hoje completamente relegado ao abandono, a Boca dos Namorados viveu anos áureos e chegou a constituir mesmo um ponto de visita obrigatória de estrangeiros. Desse facto aliás nos dá imensas vezes conta a imprensa da época. Com efeito, em 1929, o Diário da Madeira na sua edição de 7 de Março referia que quase todos os dias chegavam ao Estreito turistas que iam admirar as cordilheiras das mais altas e grandiosas montanhas, seguindo e voltando de rede da igreja para cima.
Em 1934 o correspondente do Diário da Madeira, na sua edição de 1 de Abril volta a dizer que quase todos os dias chegam a esta localidade muitos turistas estrangeiros, ávidos para gozarem a vista das panorâmicas que oferecem os cumes das nossas serras, sem dúvida das mais grandiosas da nossa ilha.
Vêm do Funchal em automóveis até à Igreja, seguindo daqui em redes, a maior parte, e outros vão a pé calcorreando íngremes e estreitas ladeiras, lançadas há séculos a ermos sem conta nem medida, encontrando-se ainda na primitiva.
Na volta, estafados não se cansam de enaltecer as belezas naturais, que, no seu dizer, não existem no mundo.

 

Estrada de turismo entre as freguesias do Estreito e de São Vicente
Todavia para que todo este impacto turístico da freguesia verificado na altura e protagonizado pelas suas serras e em particular pela Boca dos Namorados pudesse ser maior haveria que dota-la de uma estrada de turismo. Esta necessidade é aliás reclamada na imprensa da primeira metade do século com grande insistência, principalmente a partir de 1920, altura em que o centro do Estreito passou a ficar acessível ao trânsito automóvel.
De acordo com o Diário da Madeira de 14 de Outubro de 1928, a Comissão Administrativa da Junta Geral do Distrito, continuando na sua grandiosa obra de alargamento da rede de estradas de viação acelerada resolveu mandar proceder à construção de uma estrada das melhores da Madeira e aquela que certamente, maiores atracções trará para o estrangeiro, atendendo aos maravilhosos panoramas que apresenta durante o percurso. Trata-se da abertura de uma estrada para automóveis entre o Estreito de Câmara de Lobos e a Encumeada de São Vicente, passando por diversos pontos donde se descortinam surpreendentes paisagens, como por exemplo a Boca dos Namorados, com a esplêndida vista sobre o Curral das Freiras.
Em 1934, o correspondente do Diário da Madeira, perante o esquecimento a que havia sido votado este ambicioso projecto interroga-se sobre quantas e quantas vezes, pessoas de maior talento [do que ele] têm advogado e apoiado a ligação desta freguesia com a cumeada de São Vicente, pela Boca dos Namorados, Jardim da Serra, etc. para depois convidar o então Governador Civil para uma visita ao Estreito uma vez que se o fizesse certamente que a deliberação seria imediata para sua realização. Seria provavelmente o reactivar da antiga estrada Real nº 25, entre o Funchal e São Vicente, no seu trajecto entre a freguesia do Estreito e a Encumeada.
Contudo isto não haveria de passar de um sonho. Apesar de tudo e do abandono a que foi votada a Boca dos Namorados, ela possui terraplanada há vários anos uma estrada de acesso automóvel. No entanto nem as condições do seu piso o permitem, nem o local tem o mínimo de condições para receber  quem quer que seja, pese o facto de há três anos atrás ter a Câmara incluído no seu plano de actividades o arranjo de um miradouro, nesta localidade por forma a torná-lo mais agradável e acolhedor aos milhares de turistas que todos os anos visitam o concelho.

 

A festa de Nossa Senhora do Livramento
Para além do seu interesse turístico, há ainda um aspecto curioso, uma tradição que hoje se perdeu, mas que outrora era da maior importância e que se fosse, na sua essência reactivada e adaptada à realidade actual, poderia ajudar a promover a localidade e obrigar a que outros projectos mais ambiciosos fossem implementados.
Com efeito, situando-se a Boca dos Namorados no caminho pedestre de acesso entre a, na altura, freguesia do Estreito e o Curral das Freiras, o único que ainda hoje faz comunicar a sede do concelho com esta freguesia, sem necessidade de passar pelo Funchal é natural que constituísse um ponto de paragem quase que obrigatória. Este facto associado ao grande número de romeiros que afluíam ao Curral à Festa de Nossa Senhora do Livramento fazia com que na segunda-feira, após a festa , por ocasião do seu regresso, ali se propiciasse a criação de um espaço de comércio e diversão, não só destinado aos romeiros provenientes do Curral das Freiras e de regresso a suas casas, como para outras pessoas que propositadamente aí se deslocavam para os ver chegar.
Joaquim Pestana no texto de 1879 que temos vindo a citar, refere a este propósito que nesse dia assentam umas [...] barracas, improvisadas com pinheiros e louro, onde os romeiros que vêm do Curral, da festa do Livramento, saciam os seus vazios estômagos. Noutros lugares, ainda não invadidos, colocam barracas ambulantes, menos dispendiosas, que contêm unicamente um barril de vinho, de inferior qualidade, tendo por companheiros uns inseparáveis copos de vidro. No meio daquelas, podemos dizer, extravagantes barracas, e como matizando aquele enamorado sitio, vê-se uma infinidade de cestos de fruta, com especialidade tabaibos, ameixas e pêras [...]. Não é menos interessante contemplar os vários grupos de camponeses com seus fatos domingueiros, munidos da clássica viola de arame e cavaquinho, a trovarem ao desafio, consistindo o prémio daquelas lutas, muitas vezes saudadas pelos ouvintes, em um copo de vinho de superior qualidade.
Para além das barracas de venda de bebidas, também havia as que vendiam carne para espetada.
Em 1935, o Diário da Madeira, na sua edição de 23 de Agosto refere-se a esta mesma tradição ao afirmar que afim de assistirem ao regresso dos romeiros, muitas pessoas do Estreito de Câmara de Lobos e freguesias limítrofes se deslocam à Boca dos Namorados e Boca da Corrida. Com o mesmo fim também acorrem muitas pessoas aos sítios de Vasco Gil e Estrela, na freguesia de Santo António.
A tradição de ir à Boca dos Namorados esperar os romeiros provenientes da festa de Nossa Senhora do Livramento perdurou até há relativamente poucos anos, tendo o seu fim coincidido com o acesso automóvel ao Curral das Freiras.

 

Zona de laser e teleférico
No decurso de 1990 a Boca dos Namorados volta a ser notícia. Por um lado, os responsáveis pela então Junta de Freguesia do Estreito lançam pela primeira vez a ideia da criação de uma grande zona de lazer naquela área aproveitando simultaneamente o seu interesse turístico e, por outro, a Câmara Municipal por ocasião dos 200 anos da criação da freguesia do Curral das Freiras relança a ideia do teleférico que da Boca dos Namorados iria até ao Curral.  Com efeito, na sessão camarária de 22 de Março de 1990, rectificando um lapso ocorrido, aprova dar como integralmente inscrita a deliberação tomada na reunião do dia 15, realizada no Curral das Freiras sobre o estudo técnico da viabilidade de montagem de um teleférico entre a Boca dos Namorados e o centro da freguesia do Curral das Freiras.
Consciente das potencialidades turísticas da zona alta do Estreito e da necessidade de lhes tirar o maior benefício possível com vista ao desenvolvimento da freguesia, os responsáveis de então pela Junta de Freguesia do Estreito, no decurso de 1990, chamam à atenção da Câmara Municipal para a necessidade da criação na Boca dos Namorados ou Corrida, de uma zona de lazer com possibilidade de instalação futura de infra-estruturas (estalagem, parque infantil, campo de ténis, circuito de manutenção, parque de campismo, restaurante, estruturas de apoio à realização de piqueniques, etc.) capazes de atraírem  até ao Estreito o maior número possível de forasteiros, condição imprescindível à continuação do desenvolvimento, tanto da parte alta da freguesia como do seu centro. Para o efeito, recomendavam a aquisição dos terrenos necessários, antes que o tempo tornasse inviável esse projecto, que nem era utópico, nem demasiado dispendioso, constituindo para além disso, uma importante arma contra as consequências do desvio de trânsito que a via rápida iria provocar no Estreito. Afirmava ainda a Junta de Freguesia que, independentemente de eventuais projectos privados existentes para desenvolver esta área, a Câmara ou outra estrutura governamental tinha a obrigação e o dever de assegurar para si o espaço e depois, então planificá-lo de acordo com o interesse da comunidade, reservando uma área para que a iniciativa privada construísse algumas infra-estruturas necessárias, com contrapartidas ou não, e outra para o público em geral.
Todavia, infelizmente o tempo passou e nenhuma destas iniciativas pôde ser concretizada.

 

Concurso de ideias
Nos últimos anos numa atitude, onde se começa a vislumbrar algum cuidado dos responsáveis camarários em evitar a improvisação em sectores de importância para o desenvolvimento do concelho, os concursos de ideias para determinados projectos começam a ganhar alguma implantação. O arranjo urbanístico do Pico da Torre e recentemente  a abertura do concurso de ideias para a frente-mar de Câmara de Lobos são dois desses exemplos.
Todavia é preciso fazer mais. Tal como o Pico da Torre e frente-mar de Câmara de Lobos justifica-se que antes de se optar pela construção do miradouro, etc. ou por improvisações e se cometam erros graves, importa saber o que é que se pretende afinal da Boca dos Namorados e Corrida, tanto mais que a ligação entre o Curral e esta zona através da estrada que está a ser construída para a Fajã das Galinhas já não se encontra tão longe da realidade como parecia. E este facto, pela importância turística, económica e social a que está associado, tanto para a freguesia do Jardim da Serra como para a do Estreito merece o maior cuidado em termos de planificação.
Havendo como julgo que há um largo consenso na transformação de toda a área da Boca dos Namorados e Boca da Corrida num grande e polivalente espaço de lazer, impõe-se urgentemente que se salvaguarde tal pretensão e que simultaneamente se abra um concurso de ideias para o local. Depois disso então dever-se-á construir as várias infra-estruturas, conforme a disponibilidade financeira da Câmara, se essa for a opção, mas sempre integradas num plano global equilibrado e previamente ponderado.
Assim sendo talvez não seja asneira sugerir que antes de se mexer na estrada e no miradouro seja preferível encomendar uns risquinhos. Afinal não é assim tão dispendioso abrir um concurso de ideias para o efeito!

 

Bibliografia:
VERíSSIMO, Nelson. Câmara de Lobos num Almanaque, pela pena de Joaquim Pestana. Girão Revista de Temas Culturais do Concelho de Câmara de Lobos,  nº 9, 2º Semestre, 1992: 419-421.
FREITAS, Manuel Pedro. O Estreito de Câmara de Lobos na defesa do seu interesse turístico. Jornal da Madeira. Funchal, 9 de Setembro de 1990.
FREITAS, M Pedro. Carências da Freguesia do Estreito no período 1990-1993 e propostas para a sua resolução. Junta de Freguesia do Estreito.
QUINTAL, Raimundo. Veredas e Levadas da Madeira. S.R.E, 1994, 70-73.

 

 

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