Epidemia de Cólera de 1910
Apenas cinquenta e quatro anos
separaram os dois grandes surtos de cólera que atingiram a Madeira. O
primeiro, surgido em 1856, ainda era tema de conversa de avós para
netos quando, em 1910 novo surto surge
[1].
Iniciando-se no Funchal em Setembro
de 1910, ainda que s6 a 20 de Outubro fosse possível ter uma
confirmação laboratorial, rapidamente a epidemia de cólera se estendeu
a outros concelhos, apesar das medidas preventivas instituídas pelas
entidades sanitárias, mas nem sempre bem aceites pela população.
Contudo, tiveram grande importância não só no controlo da doença nas
zonas primariamente atingidas, como contribuíram, grandemente para que
naquelas em que posteriormente a epidemia se verificou, não se
atingisse as proporções antes registadas.
A cólera é uma doença própria das
populações subdesenvolvidas e de más condições sanitárias, situações
em que o seu agente encontra um meio óptimo para se desenvolver e
propagar. Por outro lado, é, também, neste tipo de população menos
culta, que as medidas eventualmente instituídas menor
eficácia poderão ter, pois nem
sempre encontram a melhor aceitação principalmente se colidirem com
preconceitos existentes ou com as suas regras culturais.
De acordo com o Dr. Carlos França,
um dos elementos que esteve na primeira linha do combate à epidemia,
foram a carência de higiene e a miséria reinante numa grande parte da
população madeirense que condicionaram a eclosão da doença. Contudo
foi a ignorância e o fanatismo do povo que constituíram os principais
obstáculos encontrados na sua debelação.
«A sua falta de instrução é
evidenciada pela percentagem de analfabetos. Sendo a população do
Distrito do Funchal de 150.574 habitantes, destes apenas 14.994 sabem
ler.
A crendice do vilão é extrema e o
seu fanatismo, que vem de longa data é enorme e fácil de apreciar
durante as epidemias. Na cólera de 1856 foi uma procissão de
penitência, em que trouxeram a imagem de Nossa Senhora do Monte à
cidade que contribuiu para a larga difusão que a doença tomou então.
Durante essa epidemia, a cólera foi introduzida na freguesia da Ponta
Delgada, até então indeme pelos milhares de romeiros que afluíram à
grande romagem do Bom Jesus.
A crença da eficácia dos santos,
como debeladores de epidemias, foi sempre arraigada entre o vilão.
Havia em 1538 uma intensa epidemia de peste que especialmente no
Funchal, causava uma assustadora mortalidade. Numa procissão de
penitência e contrição de misérias, ao estilo da época, no dia 1 de
Maio de 1538, se foram os dos Senado e o povo à banda ocidental da
cidade, onde se havia construído a ermida do Santo (Santiago Menor),
conferindo-lhe o cargo de guarda-mor de saúde, declinando suas varas
por só esperarem clemência divina por sua intercessão.
Durante a actual epidemia de cólera
(1910) viu-se quanto o fanatismo domina esta pobre gente.
Nos primeiros tempos de epidemia a
família do doente começava por chamar os padres e estes é que
preveniam os médicos.
Admitiam que a doença não era de
Deus, mas sim causada pelos homens e ao mesmo tempo acreditavam que a
bandeira das quinas (das cinco chagas, dizem eles) havia de conseguir
a extinção da epidemia»
[2].
Para a debelação da epidemia foram
tomadas medidas que simultaneamente permitiam a luta contra a doença e
protegiam as populações ainda não afectadas. De entre as medidas
destaque-se: as que iam de encontro à melhoria do estado sanitário e
que envolviam limpezas, desinfecções, recomendações na utilização de
águas, regras no manuseamento e transporte de cadáveres e o isolamento
obrigatório dos doentes quer em regime domiciliário se este oferecesse
condições quer em hospitais de isolamento instalados no Funchal, São
Martinho, Machico, Santa Cruz, Câmara de Lobos e Ribeira Brava. Por
outro lado, nalgumas zonas formaram-se também cordões sanitários que
constituídos pelas próprias gentes da terra, impediam a passagem de
indivíduos e objectos susceptíveis de estarem infectados.
No entanto, estas medidas foram
recebidas com desconfiança, tendo mesmo sido causa de motins
populares, nomeadamente, no Funchal, Machico, Santa Cruz e Câmara de
Lobos.
No Funchal, populares atacaram o
Lazareto e impediram a condução de coléricos para este estabelecimento
transformado em hospital de isolamento.
Em Machico, no dia 11 de Dezembro
de 1910, uma sublevação popular começa no sítio da Banda d’Além e
recebendo reforços ao longo do seu percurso dirige-se para o centro da
vila. A causa da revolta parece ter tido origem na instalação do
hospital de isolamento no interior do povoado. Contudo, a lenda
forjada pela crendice popular de que o Dr. Rego
[3]
andava pela ilha e nomeadamente por Machico a deitar pós para
envenenar as águas teve importância fundamental neste motim e que
levaria as pessoas não só a assaltarem a cadeia e o forte do cais onde
içaram a bandeira da monarquia e na qual o povo acreditava constituir
o elemento da cura, como ainda a fazerem buscas domiciliárias na
tentativa de encontrar o Dr. Rego
[4].
Em Santa Cruz, a não aceitação da
desinfecção domiciliária, do isolamento dos doentes e dos enterros sem
pompa, sem padre e com os cadáveres salgados (metidos na cal),
constituíram motivos para um motim popular ocorrido logo após o de
Machico
[5].
Importada do Funchal, a epidemia de
cólera de 1910 dava o seu primeiro caso em Câmara de Lobos no dia 5 de
Novembro para em breve, após um curto período em que se registaram
casos esporádicos, se instalar definitivamente e atingir o seu máximo
no dia 11 de Dezembro.
De todos os concelhos, foi Câmara
de Lobos aquele onde mais se fez sentir os efeitos da epidemia. Dos
513 casos havidos, a quase totalidade registou-se numa única
freguesia, a de Câmara de Lobos, onde 35% da totalidade dos seus
habitantes foi atingida
[6].
«As péssimas condições higiénicas
da vila, especialmente do ilhéu, onde residem os pescadores,
facilitaram a expansão do mal. A miséria da pobre classe marítima, o
pouco asseio das suas habitações (deram) à cólera um excelente meio
para se desenvolver. Casas houve em que morreram todos os seus
habitantes. Causava horror entrar nesses domicílios, onde era vulgar
estarem todos os membros da família doentes sem terem quem os
socorresse.
Para debelar eficazmente a epidemia
tornava-se urgente montar um hospital onde se isolassem todos os
doentes e organizar em Câmara de Lobos um serviço regular de
saneamento da vila. A nomeação para administrador do concelho do
alferes Gastão Pereira foi o primeiro elemento importante para o
combate da doença.
Este distinto funcionário prestou à
campanha da cólera toda a sua energia e, graças aos seus esforços as
condições higiénicas da freguesia modificaram-se por completo. (...)
Foi perfeito esse serviço de
saneamento de Câmara de Lobos, o qual consistia na beneficiação das
casas pobres, no esgotamento dos poços e sua desinfecção, na limpeza
de ruas e na construção de retretes públicas com canalização para o
mar (...).
Organizou-se um serviço de visitas
domiciliárias para surpreender casos ocultos e sonegados e tornou-se
obrigatório o internamento hospitalar de todos os casos. Uma activa
propaganda de preceitos higiénicos era feita pelo púlpito pelo vigário
de Câmara de Lobos, o Padre João Joaquim de Carvalho»
[7].
Contudo, a adopção destas medidas
não foi fácil. Na sessão da Câmara Municipal de Câmara de Lobos do dia
12 de Dezembro o presidente queixar-se-ia de que apesar da intensidade
da epidemia uma grande parte dos habitantes da vila apresentavam
relutância à aplicação das medidas profilácticas, às desinfecções, à
limpeza e cuidados com as fezes e até, mesmo, que alguns recusavam
sujeitar-se ao tratamento conveniente quando doentes. Por outro lado,
a exemplo do que havia acontecido noutros locais, também em Câmara de
Lobos se viriam a registar conflitos.
Assim, no dia 5 de Dezembro os
Paços do concelho são ameaçados de serem incendiados com bombas
[8].
No dia 12 do mesmo mês, o presidente da edilidade reconhece em sessão
camarária que o hospital de isolamento, instalado em Câmara de Lobos,
ainda não tinha entrado em funcionamento devido à oposição dos povos
dos lugares circunvizinhos. Dois dias depois a Comissão Administrativa
da Câmara Municipal de Câmara de Lobos admite uma vez mais a
existência de dificuldades na implementação das medidas contra a
cólera quando aprova um voto de louvor ao padre Joaquim de Carvalho e
ao seu cura pela forma como tinham coadjuvado no interesse da saúde
pública, não se poupando a trabalhos, diligências, sacrifícios e
prelecções com o fim de atenuar o terrível mal(...), bem como no
intento de evitar conflitos promovidos pela classe menos ilustrada.
No dia 15 de Dezembro quando era
transportado o cadáver de um indivíduo falecido com cólera, desde a
partilha de São Martinho para o cemitério de Câmara de Lobos, os
condutores foram alvo de ameaças e injúrias. No mesmo dia, «cerca das
9 horas da noite, um bando de populares reuniu em frente dos paços do
concelho, e, dirigindo-se ao cais hastearam uma bandeira monárquica no
mastro que (existia) para fazer sinais marítimos. Depois, voltando
para os paços do concelho, içaram outra bandeira monárquica num mastro
próximo àquele edifício, gritando que só queriam a bandeira das cinco
chagas, em meio de uma grande vozearia e ameaçando de ofensas
corporais o pessoal ocupado na desinfecção, que se (achava) instalado
num prédio perto dos paços do concelho»
[9].
Como consequência desta espécie de revolta, 14 dos 17 desinfectadores
fugiram para o Funchal, donde aliás provavelmente seriam.
Ainda que decidido, pela Junta
Distrital de Higiene no dia 24 de Novembro de 1910, instalar o
hospital de isolamento de Câmara de Lobos este só seria inaugurado no
dia 21 de Dezembro
[10].
Situado na Terra Chã, o hospital de
isolamento resultou de uma adaptação de uma casa pertencente a
Guilhermina Dâmaso de Jesus, viúva de Manuel Dâmaso de Jesus Júnior
[11].
Para além da guarda, que dia e
noite o protegia do ódio popular, o hospital tinha como pessoal o Dr.
José Nunes Tierno da Silva, médico do continente e que exercia o cargo
de director, o Dr. João Estanislau Pereira, que dia e noite não
abandonava a cabeceira dos doentes, quatro enfermeiros, quatro
enfermeiras, quatro serventes, pessoal da cozinha e lavadeiras.
Com 13 doentes no dia da sua
abertura, cedo a sua lotação ver-se-ia esgotada e, assim, no dia 27 de
Dezembro, sob forte escolta militar, muitos doentes tiveram de serem
transferidos para o Lazareto de Gonçalo Aires
[12].
Tal como o hospital, a capacidade
do cemitério foi durante esta epidemia ultrapassada, tendo-se, nesta
altura, iniciado esforços conducentes à sua ampliação
[13].
No dia 8 de Fevereiro de 1911 dava
entrada no hospital de Câmara de Lobos o último doente,
verificando-se, desde a sua abertura em 20 de Dezembro de 1910 o seu
encerramento em 23 de Fevereiro do ano seguinte, 89 internamentos dos
quais 25 faleceram
[14],
[15].
No total, no concelho de Câmara de
Lobos foram declarados 513 casos de cólera de que resultaram 161
óbitos.
Hoje a acontecer uma epidemia deste
tipo, o panorama seria naturalmente bastante diferente. O estado
sanitário actual de Câmara de Lobos nem de longe poderá ser comparado
ao de 1910 e, depois, os meios de que a ciência dispõe reduziria a
mortalidade para valores insignificantes. No entanto, não poderemos
esquecer que não basta melhorar as condições sanitárias de uma
população em termos unicamente infra-estruturais, e necessário fazê-la
aderir a esse investimento, o que pressupõe, algumas vezes,
moldar-lhes as suas mensalidades, educá-las e isso poderá levar
décadas. Talvez por isso mesmo, e sem excluir outros factores não
menos importantes, Câmara de Lobos constitua, na Madeira, ainda hoje,
a região de maior risco em poder vir ser vítima de epidemia, seja ela
provocada por que agente for.
Não esqueçamos que Câmara de Lobos,
apesar da sua proximidade do Funchal, foi durante várias décadas
votado ao abandono e isso teve necessariamente repercussões em termos
de desenvolvimento cultural.
Como curiosidade, e ainda a
propósito da epidemia de cólera de 1910, refira-se que ela esteve bem
viva na mente dos camaralobenses não só através das sequelas que
deixou nas famílias enlutadas como numa sua vítima, felizmente não
mortal, Augusta Adelaide Pestana. Atingida pela cólera, quando tinha
cerca de 15 anos de idade, foi dada, por seus pais, como morta e se
não fora noite talvez tivesse sido, segundo alguém afirma, enterrada
viva. Contudo, alguns sinais de vida esboçados quando, no seu leito,
já coberta por lençol e iluminada pela lamparina à espera que o dia
clareasse para ser enterrada, despertou a atenção de seus
progenitores, que com alguma surpresa a foram encontrar numa posição
que não havia sido aquela que horas antes a haviam deixado. Este
acontecimento, como seria de esperar, espalhou-se pela vizinhança,
valendo-lhe o apelido de ressuscitada.
Naturalmente que ela não
ressuscitou, aquilo que provavelmente aconteceu foi que, devido às
consequências da doença, terá entrado em estado de choque, situação
tomada erradamente como morte.
Este facto associado às condições
excepcionais, afim de evitar contágios, que rodeavam o tratamento dos
cadáveres, com inumações quase após a morte, não poderá servir de
prova às teses, de origem popular, de que muitas vítimas teriam sido
enterradas vivas. E voz corrente de que o coveiro José Moço terá dito
que algumas pessoas haviam sido inumadas vivas, recordando mesmo que
uma delas, e que ele bem conhecia, de dentro do caixão havia gritado
pelo seu nome pedindo para que o não enterrassem. Naturalmente que
estes comentários merecem-nos algumas reservas. Primeiro, porque no
momento da cólera vivia-se um clima altamente tenso e emocionalmente
pesado, onde para além do terror da morte, pairava no ar a falsa ideia
de que a doença era provocada por alguém e, mais grave do que isso,
com a pressa de se enterrarem os mortos, ficava a dúvida de que muitos
deles iam a inumar ainda vivos. Estas circunstâncias criaram condições
propícias ao desenvolvimento de falsas interpretações sobre
acontecimentos banais e ao aparecimento de vários boatos, piamente
acreditados como verídicos. Em segundo lugar, porque a transmissão
oral está muitas vezes sujeita a adaptações por parte de quem manuseia
as informações e oitenta anos são demasiado tempo para que uma
informação verbal chegue inalterada até aos nossos dias. De qualquer
modo, a dúvida se teriam ou não sido enterradas pessoas vivas, ainda
que se nos afigure pouco provável, persistirá para sempre por
esclarecer.
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