Minéu
Minéu é o nome de um habitante da
freguesia do Estreito que ficou célebre por várias histórias que a
tradição conta acerca dele.
Viveu no sítio da Ribeira Fernanda,
junto ao caminho da Ponte do Roque, num troço que, depois das obras de
alargamento, se transformou na Rua da Vargem.
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Casa onde viveu o Minéu |
Na rua obra "Era Uma Vez na
Madeira...", o padre Alfredo Vieira de Freitas publica algumas das
suas aventuras:
Parece que também aqui na
Madeira, o povo do campo estava, em geral, por D. Miguel como, quando
foi da proclamação da República, estava pelo Rei e pela Monarquia.
Na igreja paroquial do Caniço,
ainda se pode ver um sinal ou testemunho dessas civis lutas
partidárias.
O pároco de então era um tal Dr.
Miguel - cremos que formado em cânones - o qual defendia o rei
homónimo e, quem sabe, talvez por isso, era um ferrenho miguelista.
No tempo desse facciosismo, na
dita igreja, procedia-se à confecção e pintura de quadros e de que
havia de lembrar-se o vigário ?
Um dos dois oragos daquela
freguesia é Santo Antão e lembrou-se de encomendar e recomendar ao
pintor que pintásse uma tela, em que aparecesse o Santo a ser tentado
pelo Diabo, disfarçado na figura de uma mulher, vestida de azul e
branco que eram as cores do partido constitucional.
E, quem hoje for à igreja do
Caniço, ainda Iá encontra esse quadro, na capela-mor, ao lado do
Evangelho, mal suspeitando que ele representa a tentação do santo
anacoreta, quando vivia no deserto, aparecendo uma mulher a erguer
discretamente a orla do vestido, num sinal de provocação.
O pintor, porém, parece que era
liberal, porque em vez de pintar a mulher com cara de Diabo, pintou o
Diabo com cara de mulher...
O povo rural era então
geralmente muito conservador e não se deixava arrastar por novas
ideologias, e por isso, por todas as freguesias se cantava e
assobiava:
D. Pedro mais D. Miguel
São filhos da mesma mãe,
Se D. Pedro é malhado,
D. Miguel que culpa tem ?
A palavra “malhado” era uma
alusão ao partido do regime constitucional, em razão da bandeira
bicolor e das calças de xadrez, usadas nesse tempo por muitos
liberais.
Quando por ventura algum
cabecilha popular se manifestava espectacularmente miguelista, tinha
de defrontar-se com certos caciques do partido de D. Pedro, fanáticos
e façanhudos que lhe davam água pela barba.
E foi o que aconteceu a um tipo
popular, chamado Minéu, ali para as bandas do Estreito de Câmara de
Lobos, que viveu nesse tempo de caciquismo político e que se tornou
protagonista de algumas interessantes e graciosas aventuras.
Consta-nos que ainda existe a
casa, aonde ele viveu, no Sítio do Ribeiro Fernando, junto ao caminho
da Vargem e do Covão e que ainda vivem alguns membros da sua
descendência.
O Minéu, como o tal Dr. Miguel,
era pois, também um miguelista ferrenho e a sua fama ficou na tradição
oral do povo daquela freguesia, com um sabor de lenda antiga.
Certamente, hoje em dia, já não
existe quem o tenha conhecido pessoalmente.
Entretanto, foi-nos dito que
ainda não há muitos anos, nas noites friorentas de Inverno, ao serão
da lareira, velhinhos encarquilhados, envolvidos em pesados e sebentos
gibões de Iã, como albornozes, contavam aos filhos e aos netos as
façanhas humorísticas do Minéu.
Diziam esses velhos antigos que
nas casas das famílias mais importantes da freguesia havia
esconderijos, onde se ocultavam as pessoas, quando a polícia rafeira
as vinha prender, por motivo de qualquer suspeita, dito ou
manifestação a favor de D. Miguel. E indicavam as casas, onde
conheciam esses lugares de refúgio e conjuntamente e a propósito Iá
vinham as tradicionais aventuras do Minéu.
E contavam-nas mais ou menos
assim:
Uma vez, o Minéu, Iá na porta ou
janela da sua casa, pôs-se a cantar e a assobiar, em voz alta, o hino
do seu partido que era mesmo uma provocação.
Os assobios foram ferir os
ouvidos de um adversário político que já andava de nariz no ar para
ouvir contrários rumores, e, dentro de pouco tempo e antes que se
pudesse esconder, o Minéu fora cercado, em casa, por uma matilha de
liberalões.
O que Ihe havia de dar na cabeça
?
Pega num caco, com cinta e
brasas ardentes do borralho, sai apressado e esbaforido e atira-as à
cara dos que vinham com ordem para prendê-lo.
Enquanto estes limpavam os
olhos, as bochechas e o tronco, o Minéu dava ás de vila-diogo,
desaparecendo, como por encanto.
Outra ver, os inimigos
perseguiram-no e lançavam-se sempre atrás dele.
Minéu foge que foge, sobe aqui,
desce acolá, pula um barranco, desce uma parede, e, levando muita
vantagem aos perseguidores, embica para o lado do Curral das Freiras e
em breve p8s-se do outro lado da Ribeira dos Socorridos, num lugar,
aonde se poderia julgar seguro,
mas à vista daqueles que Ihe iam no encalce.
Então, sentando-se sobre um
penedo, puxa da boceta do tabaco, toma uma pitada, pois vinha cansado,
ofegante e a transpirar, e, como num desafio ou provocação aos
inimigos, que estavam no lado oposto e fronteiro, estende-lhes o
braço, num gesto indicativo de querer-lhes oferecer também uma pitada
de rapé.
Outra vez, ia ser preso pelos
Cartistas que para esse fim já rondavam a sua residência, não fosse
ele fugir.
Ora, o Minéu tinha sempre uma
ideia, uma boa saída, para qualquer emergência ou dificuldade, em que
porventura se encontrasse. De dentro de casa, disse-lhes que
esperassem um bocadinho, que já vinha e que se apresentava.
Dali a pouco, repentinamente
apareceu o Minéu, quase à pai-Adão, besuntado de banha por todo o
corpo.
Tinha ido à púcara que continha
a graxa ou tempero de condimentar as sopas e com ele ungira-se daquele
modo estranho, saindo depois precipitadamente.
Os Cartistas ainda tentaram
deitar-lhe as mãos, mas o Minéu num safanão, como um eiró, ou enguia,
livrara-se deles e raspara-se, porque não podiam segurá-lo.
Outra vez, porém, os adversários
sempre conseguiram lançar-lhe as garras e prendê-lo, pelo que foi
trazido para o Funchal e metido na cadeia, que, segundo dizem, era
então ali no Largo da Sé.
O Minéu na prisão era como um
melro de bico amarelo metido numa gaiola.
Os liberais, sobretudo populares
da cidade, passavam junto dos ferros da cadeia, zombavam dele,
escarneciam-no, dirigiam-lhe ditos, sarcasmos e facécias, mas nem por
isso se entristecia ou mostrava má disposição.
Ali estava, mas nem Deus nem o
Diabo Ihe inspiravam um meio de libertar-se.
Mas o Minéu era ladino e tinha
uma boa imaginação, que pode ser uma grande coisa na vida, e pôs-se a
magicar no meio de recuperar a sua tão apreciada liberdade.
Lembrou-se de fugir pelo cano de
esgoto e, se bem pensou, melhor realizou.
Tira a roupa, embrulha-a no
pescoço para se não conspurcar tanto e deita-se de cabeça pelo cano
abaixo, até sair junto do mar, na praia de calhaus roliços.
E, quando os Cartistas julgavam
que ele estava na cadeia, o Minéu como um melro na Primavera, já para
as bandas do Estreito de Câmara de Lobos, cantava e assobiava
alegremente o hino de D, Miguel.
É possível que praticasse ainda
outras graciosas proezas que não tenham chegado até nós, pois é
volvido muito mais de um século.
Entretanto, a tradição popular
deixou-nos o bastante, para se ajuizar do carácter e temperamento
político do Minéu que ficou para a posteridade como a personificação
do povo rural da Madeira que não quis curvar-se perante estranhas
ideologias, teimando em viver patrialcalmente com simplicidade
bucólica, sempre agarrado ao seu querido torrão natal.
In Era uma vez… na Madeira de
Alfredo Vieira de Freitas
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