Ornelas
(João
Augusto de)
Ainda
que subsistam algumas dúvidas, é opinião corrente de que João
Augusto de Ornelas terá nascido na freguesia do Estreito de Câmara
de Lobos a 26 de Junho de 1833, onde se terá também baptizado
no mês seguinte ([1],[2]).
Contudo, apesar destes dados terem sido escritos pelo seu próprio
punho, a verdade é que nunca foi encontrado o correspondente
registo, nos livros paroquiais, desconhecendo-se também quem
terão sido os seus pais. Aliás, os seus nomes são também
omitidos, tanto por ocasião do seu casamento com Adelaide
Augusta da Silveira, realizado a 1 de Dezembro de 1866, em cujo
assento surge apenas como solteiro,
periodicista e natural
do Estreito de Nossa
Senhora da Graça ([3],[4]),
como por ocasião da sua morte, verificada no Funchal, a 11 de
Julho de 1886, e em cujo registo, para além de não haver
qualquer referência aos seus pais, aponta-o ainda como tendo 57
anos [5],
o que põe em causa o ano de 1833, como o correspondente ao do
seu nascimento. Todos estes factos e mistérios em torno das
suas origens fazem com que vários autores
considerem que o seu romance "O Engeitado",
possa corresponder a uma sua auto-biografia e, como consequência
o apontem como tendo sido enjeitado ou exposto ([6]).
Apesar
das circunstâncias que terão rodeado o seu nascimento, João
Augusto de Ornelas terá tido uma mocidade e juventude risonha ([7]),
até que pouco tempo depois de 1854, foi
vítima de um acidente terrível, filho da imprevidência de uns
amigos, e que despiedadamente o veio ferir em plena e alegre
juventude ([8]),
ficando, em consequência, paralítico para o resto da sua
vida.
Este
terrível golpe actuou profundamente no seu espírito. Nele pôs
a nota triste que nunca mais o abandonou, que transluz no seu
estilo e que todas as suas obras literárias, principalmente as
novelas e romances, manifestamente exprimem. Caía
despiedadamente do pedestal em que lhe sorriam as esperanças,
em que as aspirações se lhe evolavam da mente como aves
sonoras desantranhado-se em melodias e hinos. Ia-se-lhe a saúde;
fugia-lhe a mocidade, obscurecia-lhe o horizonte ([9]).
Contudo,
João Augusto de Ornelas não só não sucumbiria à sua
desventura, como optaria pela luta e durante 30 anos nela e com
ela viveu. O trabalho foi
o seu médico, a sua consolação, o seu melhor lenitivo, na
noite da sua existência mártir. E com ele venceu... Com ele
pode viver e conquistar o nome, a posição que tinha entre os
jornalistas e escritores portugueses ([10]).
João
Augusto de Ornelas terá começado a sua actividade profissional
por ser aprendiz de tipógrafo no jornal O
Arquivista e na Ordem.
Por essa altura terá começado a publicar algumas produções
em jornais literários como o Baratíssimo, o Estudo,
etc. Em 1854, encontramo-lo a frequentar o Liceu do Funchal ([11]).
Em 1857, funda O Direito
([12]),
do qual viria a ser seu director durante cerca de 27 anos ([13]).
Muito lido desde os primeiros números, pela excelente colaboração
que tinha de distintos escritores, este jornal à altura da sua
morte, era o mais antigo jornal publicado na Madeira e um dos de
mais crédito fora dela ([14]).
Na
sua actividade jornalística à frente de O
Direito, João Augusto de Ornelas defendeu com paixão e com
convicção os seus ideais políticos, o que o fez cometer
alguns erros, erros que por vezes lhe viriam escurecer a vida
jornalística. Contudo, ao longo da sua vida de jornalista, não
deixou de patrocinar com o mais desvelado empenho tudo o que
fossem melhoramentos e benefícios para a Madeira, a ponto desta
lhe dever muitos e relevantes serviços ([15]).
Nas colunas do seu jornal,
as questões de interesse local, quando não subordinadas a
ideias de ordem política, que geralmente tudo pervertem e
deturpam, eram bem tratadas, melhor estudadas e cuidadosamente
trabalhadas ([16]).
No
Direito, fez a sua
aprendizagem, o seu tirocínio e o que ele chamava as suas
conquistas. O jornal era o seu "alter-ego",
a sua inspiração e a sua aspiração. Neste tirocínio ganhou
forças para outros cometimentos ao nível da escrita ([17]).
A
sua obra literária é muito vasta não só pelas obras que
publicou, como pela colaboração que deixou dispersa por vários
jornais. Estreou-se com algumas produções literárias no Estudo,
e no Baratíssimo. Cultivou com grande êxito o romance tendo escrito e
publicado "A Arrependida" com introdução de Júlio César
Machado (Funchal, 1871); "João Augusto de Ornelas e a nova
fábrica de açúcar" (Funchal, 1871); "A Coroa de
Oiro ou a Honra da Justiça: O que foi e o que é José Cardoso
Vieira de Castro" (Funchal, 1871); "Maria: Páginas íntimas",
com prólogo de António Augusto Teixeira de Vasconcelos (1873);
"A Mão de Sangue", com prefácio de Camilo Castelo
Branco (Lisboa,1874) ([18]); "A Justiça de Deus", com prefácio de
Manuel Pinheiro Chagas (Funchal, 1877); "A vítima de um
Lazarista" (Porto, 1879); "A Companhia Fabril de Açúcar
Madeirense, os seus Credores e o sr. Dr. João da Câmara
Leme" (Funchal, 1879); "A Madeira e as Canárias"
(Funchal, 1884); "A Fábrica de São João" (Funchal,
1879); "O Enjeitado", com introdução de Manuel
Pinheiro (Porto, 1886). Publicou ainda outros romances e
folhetins no jornal de que era director, como: "Virtude e
Crime"; "A Madrasta"; "O Aristrocrata e o
Artista"; "Amor e Sacerdócio"; "O
Ingrato"; "Um Benefício"; "Espinhos e
Rosas" e "Frei João ou uma Época da regência de D.
Pedro IV", publicado no Direito, a partir do dia 26 de
Janeiro de 1881.
Também
se dedicou à poesia tendo versos insertos no livro "Prelúdio
Poético" de J. Barros Coelho (Lisboa, 1857) e nas colectâneas:
"Flores da Madeira" do cónego Alfredo César de
Oliveira e do Dr. José Leite Monteiro (Funchal, 1871); "Album
Madeirense de Poesias..." de Francisco Vieira (Funchal,
1884) e na "Musa Insular" de Luís Marino (Funchal,
1954) ([19]).
Em
1881, preparava-se para publicar um livro de biografias de
pessoas importantes, o que nunca viria a acontecer ([20]).
Em
1883 teria em preparação trabalhos literários como "O
filho segundo"; "Virgínia"; "Os mistérios
do cemitério"; "Um baile a benefício"; "Os
anos dum príncipe"; "Crime e virtude" e
"Horas de Recreio" ([21]).
De
todas as suas obras, a mais notável terá sido a "Mão de
Sangue" ([22])
prefaciada por Camilo Castelo Branco e da qual, em 1998, foi
publicada a sua 3ª edição.
Apesar
da importância de João Augusto de Ornelas, como jornalista e
escritor, a sorte foi-lhe, contudo, sempre pouco propícia e
apesar de ter de lutar com as maiores contrariedades da vida -
as privações angustiosas, as torturas sofridas no lar doméstico,
as lutas travadas na imprensa, as calúnias e as difamações
que contra ele levantaram os seus inimigos - somente deixou de
manejar a pena quando a doença o inutilizou inteiramente para o
trabalho ([23]).
Por
ocasião da sua morte, o Diário de Notícias referindo-se aos
últimos anos de vida de João Augusto de Ornelas, salientava
que doente, cansado,
exausto, infeliz, vergado ao peso da desventura, pobre e
precisando de sustento, ele apresentava-se à sua mesa de
trabalho, mesa que era um "mare magnum" de papéis; o
corpo franzino e quase mirrado, envolto em pobres roupagens e
trabalhava para o seu Direito, como lhe chamava, escrevendo,
ditando, trabalhando sempre, para poder viver, como vivem
aqueles a quem desde o berço, a desventura se propôs
torturar-lhe a existência inteira ([24]).
Aliás,
uma descrição semelhante é feita pelo Direito ao referir que quem
entrasse, nestes últimos anos, na redacção do Direito, via a
um canto, saindo de entre um montão de jornais, de livros e de
papeis, um vulto arqueado, raquítico, de uma magreza extrema, a
cabeça coberta de cabelos quase brancos, em desalinho, faces
cavadas, de uma palidez terrosa e doentia, barba esqualida e mal
cuidada, enchendo pequenas tiras de papel com uma letra miúda,
informe e quase ininteligível.
Há
mais de 20 anos que aquele homem estava ali, sentado àquela
mesa, redigindo o seu Direito, compondo os seus romances,
procurando no trabalho literário proventos para a sua subsistência
e consolação e alívio à dura e horrível doença que o
prenderá ali. Quase paralítico, alquebrado pelas enfermidades,
sem família, envelhecera ali quase sequestrado do mundo,
acorrentado àquela banca presidiário de um destino cruel e
horrível
([25]).
No
fim dos seus dias, já impossibilitado de escrever aproveitava
a visita dos seus amigos e de pessoas que o procuravam, para
lhes ditar os seus trabalhos literários e de correspondência
([26]).
A
vida de João Augusto de Ornelas foi um contínuo labutar,
incessante, guiado por um norte que a ninguém fica mal: a
vontade de aparecer bem, destacando-se do comum ([27]).
Envaidecia-o a opinião que dele formaram os nossos melhores
escritores e para alcançá-la e guardá-la incolumo, trabalhou
toda a vida, com tenaz e persistente constância ([28]).
No
seu espírito culto, no seu coração, no seu modo de viver todo
inteiro, em toda a sua vida de homem e de jornalista, manifestou
um grande amor pelos pobres. Ele, que era muito pobre,
contentava-se com o indispensável e distribuía o que lhe
ficava, de boa vontade, sentindo-se bem em fazer bem, como que
provando assim que, sabendo que é a desgraça, pelas condições
de toda a sua vida, tinha jurado mitigá-la onde ela aparecesse.
Em
sua casa dava agasalho, como uma esmola também, aos que o
rodeavam, e que até os últimos momentos da sua vida o trataram
com carinhoso afecto esforçando-se todos por lhe darem lenitivo
as dores cruéis lancinantes que o torturavam sem piedade ([29]).
O
pouco que tinha, que com tantos sacrifícios e tanto trabalho
podia ganhar, repartia-o de bom grado com os pobres e, ele, que
sofria tanto, que toda a sua vida fora vítima das mais
cruciantes dores e dos mais fundos desgostos, sentia-se feliz,
achava consolação e alívio em minorar com o seu obelo o
sofrimento daqueles que pela dor e pela desventura lhe eram irmãos
e companheiros. Por isso, morreu pobre, pobríssimo tendo
repartido em vida com os desditosos o que o trabalho lhe pudera
dar ([30]).
O
seu amor pelos desprotegidos fê-lo não só ser sócio fundador
da Associação de Beneficência do Funchal, como a apoiar através
do seu jornal as instituições de beneficência, como o Asilo
da Mendicidade e Orfãos, a cuja Comissão Administrativa chegou
a pertencer. Foi aliás a uma destas instituições de beneficência
que ficaria a dever os alimentos dos últimos dias da sua vida e
o caixão que o levou à terra ([31]).
Possuía
a comenda de cavaleiro da Ordem militar de Nossa Senhora da
Conceição de Vila Viçosa; foi Procurador à Junta Geral do
Distrito; Vogal da Comissão Administrativa do Asilo da
Mendicidade, cargo que exerceu muito provavelmente desde 1868 ([32],
[33]);
foi um dos sócios fundadores do Grémio Literário e Recreativo
dos Artistas Funchalenses ([34]) onde viria a ocupar a presidência da sua Assembleia
Geral ([35]);
foi sócio correspondente do Gabinete de Literatura de
Pernambuco ([36]);
foi sócio correspondente do Instituto de Coimbra, da Real
Associação dos Arquitectos e Arqueólogos Portugueses, foi sócio
ordinário da Sociedade Geografia de Lisboa e correspondente da
de França e foi sócio fundador da Associação dos Jornalistas
e Escritores Portugueses.
[3]
MARINO, Luís. Galeria Biográfica - João Augusto de
Ornelas. Diário da Madeira, 4 de Fevereiro de 1967. João
Augusto de Ornelas era genro José Marciano da Silveira,
professor primário, poeta e director de "A Voz do
Povo".
[4]
ARM Registos Paroquiais, Santa Maria Maior, 1866,
Assento nº 43, 1 de Dezembro de 1866.
[12]
O Diário de Notícias de 13 de Julho de 1886, num
texto relativo à sua morte, refere-se que João Augusto de
Ornelas fundou com um
cavalheiro muito inteligente desta terra, que ainda existe,
para não nos deixar mentir, o Direito.
[20]
De acordo com o Diário de Notícias de 1 de Setembro
de 1881, João Augusto de Ornelas preparava-se para publicar
um livro de biografias de pessoas importantes.
[33]
De acordo com o Diário de Notícias de 20 de Junho
de 1877, João Augusto de Ornelas há 9 anos vogal da Comissão
Administrativa do Asilo da Mendicidade havia pedido a sua
exoneração ao Governador Civil, que no entanto ainda não
a havia aceite.
[34]
De acordo com o Diário de Notícias de 4 de Abril de
1877 João Augusto de Ornelas foi um dos sócios fundadores
do Grémio Literário dos Artistas Funchalenses.