Procissão das Cinzas
Realiza-se
anualmente em Câmara de Lobos mais precisamente a partir da igreja do
ex-convento de São Bernardino, na quarta-feira de cinzas. Em 1950, o
cortejo saia da Igreja de São Bernardino, ia até à igreja de São
Sebastião voltando depois ao ex-convento. Tradicionalmente esta
procissão incorporava as seguintes imagens: Senhor dos Passos; Santo
Ivo; Santa Margarida Maria de Cortona; São Benedito; Santo António (de
cor); Santa Rosa de Viterbo; São Francisco de Assis /da penitência) e
Nossa Senhora
[1],
todas elas na posse não da igreja, mas de particulares.
Em 1953 a imagem de Santa Rosa de
Viterbo encontrava-se na posse de Maria Natália Figueira; a de São
Salvador, na posse de Francisco Eduardo Figueira; a de São Francisco
de Assis, na posse de João Augusto Ferreira; a de São Roque, na posse
de João Romão dos Santos; a de Santo António de Motte, na posse de
Adelina do Livramento Barradas; a de Santa Margarida, na posse de
Germano Soares de Sousa; a da Rainha Santa Isabel, na posse de João
Luís Barreto; a de Santo Ivo, na posse de herdeiros de António Vieira
Barradas e a de São Francisco de Penitência, na posse de herdeiros de
Manuel Pinto
[2].
Ainda que um texto publicado pelo
Jornal da Madeira em 2002, faça remontar a realização da procissão
das cinzas em Câmara de Lobos, ao ano de 1925, tal não parece
corresponder à verdade, uma vez que, Nelson Veríssimo no seu livro
"O Convento de São Bernardino em Câmara de Lobos - Elementos para
a sua história", dá conta da sua realização em 1900. Por outro
lado, sendo esta procissão uma manifestação religiosa característica
dos frades Franciscanos é de supor que ela teria sido instituída em
Câmara de Lobos antes da extinção do convento de São Bernardino, ou
seja antes de1834. É provável que 1925 tenha sido o ano em que, após
um longo interregno e coincidindo com as obras de restauro do
ex-convento de São Bernardino, o padre João Joaquim de Carvalho
reactivou a tradição da realização da Procissão das Cinzas.
Entre 1977 e 2001 a realização
desta procissão não se terá realizado, sendo a tradição retomada em
2002.
Para o padre Francisco Caldeira,
pároco da paróquia de Santa Cecília, à qual esta procissão se
encontra associada,
“a Procissão das Cinzas, longe de ser considerada um
acto folclórico, (...) é uma manifestação exterior de fé profunda,
um acto penitencial, tal como o são também as Vias Sacras, as
procissões dos Passos, que significam, antes de tudo, a caminhada da
comunidade para a vivência da Páscoa. Por isso mesmo, ela faz parte
dos actos próprios da quarta-feira de Cinzas.
(...) Outrora, antes da criação das novas
paróquias, (24-11-1960) o cortejo dirigia-se à Igreja Paroquial de
Câmara de Lobos, onde também se realizava o rito da imposição das
Cinzas.
Nove imagens de oito santos são levados no seu
andor, (duas de S. Francisco), e acompanhados pelos seus devotos.
(...) As referidas imagens têm sido guardadas por
devotos que os vêm transmitindo à guarda dos seus descendentes, de
quando o Convento de S. Bernardino entrara em ruínas. A tradição
oral fala dum incêndio, em 1920, não havendo, porém, documento algum
que por escrito no-lo diga. Fala-se antes das ruínas do convento,
desabitado pela expulsão dos frades por leis anti-religiosas.
(...) Todos os santos cujas imagens são veneradas nesta
Procissão das Cinzas, pertenceram à Congregação Franciscana. São,
portanto, todos portadores e luzeiros dessa espiritualidade que
arranca em Francisco de Assis.
As famílias que os guardam nas suas casas também
são os que os transportam aos ombros, acompanhados dos seus devotos.
O traje negro denuncia o espírito de penitência com que se participa
nesta caminhada.
(...)
Oito santos e nove imagens iluminam as ruas da
Paróquia de Santa Cecília, neste acto penitencial da Procissão das
Cinzas.
(...) S. Francisco de Assis. Duas imagens
deste santo saem na procissão. É um santo italiano que viveu no
século XII. É o santo da ecologia, amigo dos pobres e da natureza,
que chamava a todos por irmãos, mesmo os animais e a todos os seres
da natureza. Grande amigo de Jesus Cristo, pobre, humilde e
sofredor. Pela primeira vez armou o Presépio para chamar a atenção
dos homens para a humildade, a pobreza e o amor de Deus pelos
homens. Recebeu no seu corpo os estigmas da Paixão de Cristo. João
Paulo II acaba de concentrar os chefes das religiões na sua terra
natal, Assis, para ai chamar os homens à paz, e a não utilizar o
nome de Deus para qualquer espécie de guerra. Que melhor guia para a
caminhada quaresmal?!
Santa Margarida de Cortona. Italiana do século XIII. Depois
de um vida dissoluta, torna-se uma grande amiga de Jesus e dos
irmãos, com uma vida austera e disciplinada. Exemplo da atitude de
conversão permanente e testemunho de que é sempre possível o
arrependimento e a conversão interior. Luzeiro de penitência,
caminho da Quaresma.
São Roque. Francês do século XIV. O grande
apóstolo e amigo dos leprosos.
Torna-se enfermeiro e depois médico para curar
doentes. Grande profeta da solidariedade para com os desprezados.
Exemplo e guia da acção caritativa dos cristãos na caminhada pascal.
Santa Rosa Viterbo. Italiana do século XIII.
Uma grande missionária e evangelizadora das crianças e dos
adolescentes. Luzeiro para as famílias, as catequistas e as muitas
crianças da comunidade paroquial. Luz para a educação, para os
professores e todos os que têm a ver com este grave problema da
nossa sociedade.
São Benedito. Etíope, do século IV. Homem de
oração e contemplação. Guia e modelo para todo o cristão que
necessita viver em união contínua com a Trindade Santíssima. Luzeiro
para encontrar e dedicar-se ao essencial e deixar o acessório e
acidental.
Santo Ivo. Francês do século XII. O homem da
justiça e do direito. Luminária para os nossos dias de tamanhas
injustiças sociais. Patrono dos advogados que devem tê-lo como guia
e modelo e, como ele, construir a paz e a justiça.
Santa Isabel de Portugal. Portuguesa do
século XIII. Esposa de D. Dinis, uma mulher com um coração grande
para com os mais pobres e miseráveis, apostola da caridade e da
partilha, em cujo regaço as esmolas para os pobres se transformaram
em rosas aromáticas, agradáveis aos olhos do Rei. Exemplo inspirador
da renúncia quaresmal em favor dos irmãos carenciados.
São Salvador. Jesus Cristo, o Salvador da
humanidade. Aquele que ensinou a Verdade, mostrou o Caminho, e deu a
Vida. O Senhor dos Passos. Ele aí vem carregando a cruz, onde cada
cruz se encontra sobrenaturalmente valorizada.
(...)
A procissão das Cinzas realizou-se «em épocas
remotas» também no primeiro dia da Quaresma, no Funchal. Saía do
convento de S. Francisco, acompanhada pelos frades franciscanos que,
durante o seu trajecto entoavam cânticos adequados.
Passava nas igrejas de Santa Clara e das Mercês,
onde as religiosas cantavam quando a imagem de São Francisco
abraçando a de Cristo, entrava no templo.
A procissão abria com o pendão da Ordem Terceira de
São Francisco, e logo a seguir a chamada Árvore da Penitencia. Esta
era constituída por um crucifixo guarnecido de ramos de espinheiro,
um rosário e umas disciplinas.
«Atrás, caminhava a irmandade da penitência, indo
junto da cruz quatro irmãos, levando um uma bandeja com dois ossos
trocados e uma caveira, outro uma urna de vidro com cinzas
provenientes de ramos de oliveira e de palmeira, benzidos em domingo
de Ramos, outro uma ampulheta com duas asas e o quarto um velador
com candeia apagada.
Seguiam-se a cruz da Ordem e o andor do Senhor dos
Passos, com a respectiva confraria, e depois os andores de São
Francisco com a cruz às costas, da Confirmação da Regra, em que se
via o mesmo santo, o papa Inocência III e um cardeal, de Santo
António de Noto, (preto), de São Lúcio e Santa Bona, (os dois
irmãos), de Santa Rosa de Viterbo, de Santa Margarida de Cortona, de
Santa Joana, de Santa Isabel, filha da rainha da Hungria, de S.
Roque, de Santo Elisário e Santa Delfina (os bem-casados), de Santo
Henrique, rei da Dácia, de S. Luís, rei de França, de Santo Ivo,
doutor, e de Santa Isabel, rainha de Portugal, indo todas estas
imagens acompanhadas das respectivas confrarias.
Fechavam o préstito religioso a mesa da Ordem
Terceira, o andor de S. Francisco abraçado com o Cristo, a
corporação dos Capelães, o pálio roxo, sob o qual se viam três
eclesiásticos com pluviais da mesma cor, levando o do meio um
relicário com o Santo Lenho, e finalmente o Bispo da Diocese, com a
capa magna, na qual pegavam cinco seminaristas.» (Elucidário
Madeirense, Vol. III, pg. 141)
Depois que, em 1834 foram expulsos os franciscanos
do Convento de São Francisco, a procissão passou para a igreja do
Colégio, onde se realizou até aos fins do século.
Um autor estrangeiro escrevia em 1827, a respeito
desta procissão: «As imagens são quase do tamanho do homem e vestem
todas hábitos religiosos, sem exceptuar
S. Luís, rei de França, e Santa Isabel, rainha de
Portugal.
Uma delas que representa Nosso Senhor vergando sob o peso da cruz, é
um trabalho bem executado e que, pela
expressão de sofrimento que apresenta, produz impressão naqueles que
a contemplam. (…)
[3]
A Procissão das Cinzas no Brasil
Por Anderson Moura,
OFS/JUFRA
In Boletim da Paróquia N. S. da Conceição, Nilópolis-Brasil, n. 9,
p. 7, mar. 2003.
"Um curioso evento da Ordem Terceira de S.
Francisco - como era chamada no passado a Ordem Franciscana
Secular (OFS) - que convém ser lembrado nesta época é o da
tradicional Procissão das Cinzas, onde os membros da Ordem
anunciavam e abriam o período da Quaresma, na Quarta-Feira de
Cinzas.
A Procissão era uma manifestação religiosa de grande
importância que se iniciou em 1647 e foi até 1861 no Rio de Janeiro,
mas que era constante também em outros lugares, a exemplo de Lisboa
e Recife. Ela se destacava pela originalidade e riqueza cenográfica
de paramentos e atos litúrgicos divididos em alas com andores
decorados (verdadeiras alegorias), separadas por anjos e cartazes
explicativos. Segundo o saudoso frei Egberto Prangenberg (falecido
em Agosto último, aos 93 anos), que descreveu a Procissão em seu
livro Francisco entre os seculares (RJ: 1996), o evento é
comparável somente às exibições carnavalescas de hoje. A passagem da
Procissão causava grande impacto e entusiasmo na população. A
participação de todos os membros da Ordem, inclusive, era
obrigatória e quem não pudesse ir deveria pagar uma espécie de
multa.
Vinha na frente uma personagem chamada de papa
angu, metida num camisolão de estopa com três buracos: dois na
altura dos olhos e um na boca. O papa angu era uma espécie de
abre-alas, pois ele ia soprando uma corneta e agitando um
chicote contra o grupo de garotos que se formava em frente à
procissão, que lhe atiravam caroços de pitombas e lhe seguiam com
vaias. Seguiam-se diversas figuras simbólicas. Frei Egberto
Prangenberg cita que "longa seria a exposição de todas as figuras
que acompanhavam a procissão. Fora dos andores se observava a
personificação em figura de destaque, num total de 18: a Penitência
- a Morte - o Anjo do Juízo - o Monstro Infernal - o Anjo do Paraíso
- Adão e Eva - o Querubim - a Árvore da Penitência - a Memória da
Morte - a Contrição - a Confissão - a Satisfação - a Oração - a
Obediência - o Desprezo do Mundo - o Tirano - o Anjo Defensor - a
Ordem Terceira", além de uma dezena de andores conduzindo santos,
como: Santa Bona, Ângela de Foligno, Margarida de Cortona, Rosa de
Viterbo, São Vibaldo, Lúcio, Ivo Doutor e São Francisco em várias
passagens de sua vida.
O povo apelidava certos santos: São Vibaldo era o
santo do pau oco; São Lúcio e Santa Bona, que iam num só
andor, eram os bem-casados.
Numa das passagens da vida de Francisco, a dedicada
ao Trânsito (morte/passagem) do Seráfico Pai S. Francisco, o andor
que era o décimo sétimo da procissão ia acompanhado de terceiros
(franciscanos seculares – integrantes da OFS), cada um carregando
nas mãos uma tocha, num gesto parecido com a actual celebração do
Trânsito, em que cada um acende uma vela.
Contudo, no decorrer do século XIX houve um declínio
do sentimento religioso, pois as brincadeiras e irreverências que
surgiram em torno da Procissão fizeram com que ela fosse vista como
uma espécie de prolongamento das festividades profanas da véspera (o
Carnaval); isto acabou causando a sua substituição pela cerimónia do
Lava-Pés".
Fundação Assis Chateaubriand
(...) Há um velho relato, narrado pelo historiador
Sidney Chalhoub, sobre os tempos do Império, quando a procissão de
Cinzas, no início da Quaresma, era uma das mais ricas festas do Rio
de Janeiro. O clero, nesse dia, aparecia com sobrepelizes de renda e
os membros das irmandades com opas coloridas. As imagens dos santos
eram adornadas com vestimentas luxuosas. Os devotos, com postura
altiva, carregavam tochas. Havia cantos e doces para as crianças. A
guarda militar comparecia orgulhosa. As ruas se apinhavam no centro
da cidade. Organizada pelos Terceiros da Ordem da Penitência, de
cujo templo partia, a procissão fora instituída muito antes, em
1647. Naquele ano de 1849,o andor de São Benedito, pela primeira
vez, não ocupou seu lugar. Alguns Terceiros, cheios de prevenções,
cismaram em não levar o santo sob alegação de que "branco não
carrega negro nas costas, mesmo que seja santo". São Benedito, com
uma legião de devotos na cidade, ficou abandonado na sacristia. No
mesmo ano surgiram os primeiros vómitos pretos. No verão seguinte, a
primeira grande epidemia de febre amarela abateu a cidade. As beatas
e os adeptos do candomblé, que identificam São Benedito com Omolu,
espalhavam que o flagelo era a vingança do negro ofendido (...).
Museu
das Cinzas
Em Vila do Conde, Portugal
Continental existe um museu denominado Museu das Cinzas, onde se
encontram em exposição as 15 imagens da procissão das cinzas, que
anualmente se realiza na localidade.
"Face
à quantidade e valor das peças de Arte Sacra, Paramentaria e
Alfaias Litúrgicas de que é propretária, a Ordem Terceira de
S. Francisco de Vila do Conde, decidiu instalar um Museu,
para o qual construiu um novo edifício de raíz.
No
Museu das Cinzas podemos admirar um conjunto de imagens de
Arte Sacra, Alfaias Litúrgicas, Resplendores em ouro e
prata, para além das quinze imagens da Procissão das Cinzas,
que dão nome a esta instituição muselógica".
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