CÂMARA DE LOBOS - DICIONÁRIO COROGRÁFICO

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RTP-M Extracto de "Escapanhinha em Câmara de Lobos"


 

 

Quinta do Jardim da Serra

 

Quinta existente no Jardim da Serra, freguesia do Jardim da Serra, no concelho de Câmara de Lobos. A sua história encontra-se ligada a Henry Veitch, um súbdito inglês chegado à Madeira em 1809, investido das funções de cônsul e que aqui haveria de se fixar durante vários anos..

Pouco tempo depois da sua chegada à Madeira terá adquirido uma extensa propriedade no sítio da Serra, freguesia do Estreito de Câmara de Lobos, onde terá construído uma quinta, que inicialmente viria a ser conhecida por Jardim [1], tal era a riqueza e beleza do seu jardim, mas a que rapidamente se associou a palavra Serra, ou seja a denominação do local onde se encontrava implantada, resultando daí o epíteto de quinta do Jardim da Serra.

A propósito da sua denominação inicial, vários estrangeiros que, na primeira metade do século XIX, visitaram a quinta do Jardim da Serra referem-se a ela como “Jardim”. Em 1834, John Driver, em Letters from Madeira in 1834, identifica-a como quinta do Sr. Veitch, o Cônsul Inglês, chamada de Jardim.

Ainda que não se saiba ao certo a data da construção da casa nela existente, julga-se que ela possa ter acontecido antes de 1820. Com efeito, em 1823 ela já existia uma vez que T. E. Bowdich, naturalista inglês que visitou a Madeira no 1º quartel do século XIX, autor de Excursion in Madeira and Porto Santo during the Autumm of 1823, pernoitou nela e ficou maravilhado com o seu jardim, tendo até estudado algumas espécies de plantas nele plantadas.

A forma como T. B. Bowdich descreve a Quinta, nomeadamente o facto de ter estudado algumas plantas, leva-nos a concluir que a quinta tenha sido construída em data bastante anterior a 1823. Se assim não tivesse sido, não teria havido tempo para que as plantas fossem plantadas e crescessem. Por ouro lado, para adquirir a fama que tinha em 1823, é natural que a Quinta, nesta altura, já tivesse alguns anos de existência.

Desde o início, esta quinta viria a seduzir, tal como aconteceu com T. B. Bowdich, todos quantos tinham oportunidade de passar junto ou de a visitar.

Em 1852 e 1856, Maximiliano, filho segundo do arquiduque da Áustria, Francisco Carlos e irmão do imperador da Áustria, Francisco José I, visitou a Madeira. Eberhard Axel Wilhelm, na revista Girão ao se referir à sua passagem pela Madeira e nomeadamente pela quinta do Jardim da Serra diz: Em 5 de Julho de 1852, Maximiliano e os seus acompanhantes passaram pela quinta isolada dum artigo cônsul inglês, não referindo, no entanto, o seu nome. Foi certamente a de Henry Veitch […].

O    austríaco confessou que gostaria imerso de possuir uma quinta como essa, afastada do mundo. Um dos seus sonhos era ficar mais tempo na Madei­ra e nesse caso escolheria essa casa, cantando ali as suas canções e soltando gritos de júbilo na floresta verde. Lamentou não ter podido entrar na quinta, cujo portão não estava aberto a estranhos.

Por ocasião da segunda viagem à Madeira, Maximiliano e os seus acompanhantes, em 7 de Dezem­bro de 1859, deram outro passeio a cavalo à miste­riosa quinta do cônsul que entretanto falecera. O seu nome era «Jardim da serra», notou o nobre. Dessa vez, pelo menos, conseguiram entrar na quin­ta mas a vivenda, no parecer do austríaco construída num estilo italiano bizarro, situada à beira dum ria­cho de água a fresca e à sombra de várias espécies de árvores sempre verdes, encontrava-se sempre fechada.

A casa começava a decair, as paredes estavam deterioradas e tudo permanecia calmo e sério. Ape­nas um velho pavão, o último sinal vivo dum antigo esplendor, estava sentado no telhado coberto de musgo, sem se mexer. Erva daninha estava a crescer fortemente entre as plantas mais raras.

[…] Os seus [de Henry Veitch] restos mortais estavam entretanto a apodrecer debaixo dum obelisco de mármore, cercado por ciprestes, no parque plantado pelo cônsul, esclareceu MaximiIano [2].

Perto do túmulo, o habsburgo viu a plantação de chá de Veitch, entretanto igualmente abandonada. Para a produção do seu próprio chá, o (ex-) cônsul ti­nha chapas de cobre e um aparelho, a fim de secar as folhas

Em 13 de Outubro de 1903, o Diário de Noticias publica um artigo enaltecendo o Jardim da Serra e onde se afirma que o Jardim da Serra é um vale das montanhas do interior que mereceu este nome pela força da vegetação que o reveste.

O espectador descobre, ali não só o anfiteatro como também um quase completo circulo de montes, tão-somente interrompido por uma aberta para o mar, limitada, mas formosa, onde está fundada em assento eminente em meio do vale a linda casa que era do falecido cônsul Veith, com um ribeiro por cada lado, formando-se adiante uma linda queda de água precipitada num barranco donde unidos os dois ribeiros partem com engraçado curso para o mar.

Da casa, a melhor do monte dos Prazeres, nos limites da extensa quinta, desfruta-se uma vista variada, majestosa e encantadora, ora levantando os olhos para as serras cobertas de arvoredos, ora volvendo-os fora ela se faz caminho por entre terrenos cultivados de vinhas que produzem o melhor vinho da ilha.

Próximo do Jardim, talvez a uma hora de caminho o viajante curioso pode contemplar uma paisagem que infunde certo terror por quanto majestoso, mas assustados, é o aspecto do abismo conhecido pelo nome do Curral das Freiras, crendo-se ser aberto, sem dúvida, por algum terramoto ou por uma convulsão da natureza posterior à formação destas montanhas; apresenta uma profundidade de 4 mil pés, conforme os pontos donde é observado. Em tempos a propriedade do Jardim da Serra produziu muito chá e também caneleira de Ceilão [3].

Em 1925, o açoriano Marquez de Jácome Correia na sua obra “A Ilha da Madeira, Impressões e Notas Archeologicas, ruraes, Artísticas e Sociais”, descreve a Quinta do Jardim da Serra da seguinte forma: A casaria vermelha do antigo cônsul inglês corre ao longo de um terraço à frente de um bosquezinho, animando uma solidão que seria grandiosa e pitoresca, banhada pelas águas da ribeira, se o nosso espírito com o hábito adquirido não exigisse já a intervenção social na obra decorativa da natureza da Ilha. O muro amainelado debruçado sobre o leito das águas correntes, a grande cancela de gradeamento de ferro que dá entrada para a propriedade [], a ponte que conduz a essa cancela, de tosca madeira estafada pelo trânsito e carcomida pelo tempo; a prolongada alameda de carvalhos revestidos de tenros rebentos amarelados da nova folhagem da primavera, que continua a estender a quinta pela vertente fora, coberta recentemente por matas de eucaliptos e pinheiros: toda essa cuidadosa vegetação e disposição do domínio nobilitado evoca-nos o papel e a influência florestal e botânica que desempenhou o Jardim da Serra na História da Madeira, envolvendo-o numa espécie de estância lendária, em que o túmulo do seu fundador, levantado em modesto obelisco, é padrão comemorativo da sua gloriosa fundação.

Henrique Veitch […] edificou a casa e plantou as terras juntas, de variadíssimas essências, cultivando e ensaiando curiosidades hortícolas, e dessa iniciativa surgiu a aclimação do chá, do café, da canela e de muitas outras espécies exóticas, que à mistura com árvores e plantas de flores povoaram aquele sítio ermo em que a urze, os loureiros e a uveira eram os únicos habitantes vegetais com as ervas e os fetos.

Em 1956, Maria de Lamas ao descrever a quinta do Jardim da Serra fá-lo da seguinte maneira:

Muito se tem escrito já sobre esta quinta, tão bela é e em tão deslumbrante panorama se situa. O nome corresponde ao encanto da natureza, não apenas em relação à quinta mas a toda aquela região, de que tomou o nome.

Duas vezes ali estive, em diferentes épocas, e não sei dizer se o espectáculo das cerejei­ras floridas suplanta o das mesmas árvores cobertas de frutos, encarnados e reluzentes como rubis suspensos da folhagem. De longe, a brancura das flores transfigura tudo e dá à paisagem uma leveza quase material; mas naquela tarde em que eu passei por entre mi­lhares de cerejeiras pintalgadas de escarlate e vi cerejas nas mãos de crianças e adultos, numa alegria de fartura, os campos tiveram para mim uma alegria nova. Nela se inte­grava a vida humana em vibração de humilde plenitude. Festa das cerejas! Dia de colheita e de expansão. Tudo quanto pudesse haver de convencional naquela romagem aos cerejais, em dia marcado, para criar uma tradição, deixou de o ser. A própria natu­reza colaborava no folguedo do povo - mais alacre do que ele: as cerejeiras riam; os cestos atestados de cerejas riam; os brincos de cerejas tornavam mais claro e moço o riso das raparigas; os raminhos de cerejas eram manchas rubras, risonhas, a ressaltar na tela imensa e já de si maravilhosamente colorida.

Levantam-se em volta soberbas montanhas que, pelo contraste da sua rudeza, maior realce dão à fertilidade e sedução do vale. Nas cumieiras, para Leste, abrem-se a Boca dos Namorados e, a pouca distância, a Boca da Corrida, donde se avista, nas pro­fundezas de formidável cratera, o Curral das Freiras. Mas a estrada vai-se desenrolando na vertente de cá, em voltas e voltas, numa região das mais mimosas da ilha -  toda ela um jardim e um pomar, com a ribeira a correr lá no fundo.

Insensivelmente, subimos, subimos, até oitocentos metros de altitude. Então, a mancha vermelha da casa e, à frente, o seu muro com arcadas, a limitar-lhe, a esplanada donde se vê o mar, surgem entre o arvoredo! Apesar do percurso nos preparar para uma visão fascinante, fica-se surpreendido. E deslumbrado também. Apetece parar e contemplar demoradamente aquela estampa singularmente formosa, policroma, e de tal forma enquadrada na harmonia total que dir-se-ia ser ali tão natural como os montes e as matas que lhe servem de moldura.

A aproximação não desencanta. Se possível, multiplica os motivos de agrado; ruazinbas bem cuidadas, que nos levam por entre árvores gigantescas e renques de novelos azuis, como num país de sonho. (Será condão especial das quintas da Madeira fazerem­-me sonhar perante a realidade?) Falei nas árvores: outro encantamento para mim, nesta ilha sortílega. Tantas, tão variadas, majestosas e acolhedoras! Gosto de me deter junto de cada uma, tocar-lhe, pronunciar-lhe o nome e muito tenho aprendido aqui.

As do Jardim da Serra são espantosamente fortes, copadas e vetustas - sem exclusão da dominadora beleza. Conheço quase todas as espécies que ali vivem, algumas há mais dum século. Olho-as como amigas - carvalhos, vinháticos, pau-branco, loureiro­-régio… Prende-me a atenção o tronco velhíssimo dum til, já sem copa e mesmo assim reduzido a pouco mais de dois metros de altura. Simplesmente... No interior desse colosso abatido vem crescendo, estuante de seiva, um novo til! Ali está outro prodígio vegetal: o toco dum castanheiro formidável, com sete metros e meio de perímetro na base. Quando estava em pleno vigor, alto como uma torre, Henrique Veitch, que foi durante largos anos Cônsul de Inglaterra na Madeira, instalou-lhe nos ramos cimeiros um catavento a que o povo chamou “adivinha-tempo". A mais de meia altura do tronco, onde os ramos formavam uma espécie de suporte, mandou ainda H. Veitch instalar uma origi­nal mesa, onde ia frequentemente tomar chá... Mas a velhice foi corroendo o gigante.

Já muito carcomido, cheio de cavernas, um vendaval derrubou-o, numa noite pavorosa, fazendo-o rolar para o leito da ri­beira. Tudo quanto resta dessa ár­vore notável é um cepo morto -  em todo caso ainda fora do comum, pelas suas dimensões.

Não se pode ir ao Jardim da Serra sem evocar a invulgar personalidade de Henrique Veitch, que mandou edificar a casa, na primeira metade do século XIX. A tal ponto se enamorou da Madeira que não se limitou a comprar e a construir aqui várias quintas e moradias, entre as quais a quinta do Jardim da Serra, seu lugar preferido: ali quis ficar sepultado. Lá está, num ponto onde muito gostava de passar as horas de repouso e meditação, o singelo mausoléu mandado erigir pela sua viúva em 1857, ano da sua morte, em satisfação do desejo que ele insistentemente manifestou durante a vida […].

A situação da casa do Jardim da Serra é privilegiada! Numa elevação, mesmo a meio do vale, dali se descobre majestoso e variado panorama, que se estende por entre serranias, em anfiteatro, frente ao mar distante. De cada lado corre um ribeiro, juntando-se os dois, mais adiante, numa queda de água de belíssimo efeito e formando depois um só curso até à desembocadura. As suas pontes, de rústico alçado, dão à quinta mais um encanto, e tantos ela possui! Mas Henrique Veitch não se preocupou apenas em alindar aquele lugar fascinante, que é das mais belas paisagens madeirenses, ora florida e risonha, ora imponente e sempre verdejante, conforme as estações: além de plantar numerosas ár­vores, ensaiou também ali diversas culturas, entre elas a do chá. Iniciada em 1827, com dezasseis pés que conseguiu mandar vir da China, tinha, em 1841, cerca de quinhentos. Poderá parecer pouco, se não se souber que o terreno onde eles se desenvolveram fica a cerca de novecentos metros acima do nível do mar, num sítio onde, no rigor do Inver­no, chega a cair neve, embora seja de curta duração. Certo é que foi possível obter magnífico chá, autenticamente madeirense, apreciadíssimo pelos que alguma vez o tomaram [4].


 


[1]      Vários estrangeiros que, na primeira metade do século XIX,  visitaram a quinta do Jardim da Serra referem-se a ela como “quinta do Sr. Veitch, o Cônsul Inglês, chamada de Jardim”

[2]      Embora o início da inscrição tumular no mausoléu, “Here lie the mortal remains of Henry Veitch…) levem a crer que o cônsul está sepultado na sua quinta, há quem admita que em 8 de Agosto de 1857, um dia após a sua morte, tenha sido enterrado no cemitério britânico do Funchal.

[3]      Wilhelm, Eberhard Axel. O Concelho de Câmara de Lobos entre 1850 e 1910 visto por alguns germânicos. Girão-Revista de Temas culturais do concelho de Câmara de Lobos, Nº5, 2º semestre de1990, 185-195.

[4]      Lamas, Maria. Arquipélago da Madeira - Maravilha Atlântica. Editorial Eco do Funchal, 1956.

 

Câmara de Lobos

Dicionário Corográfico
Edição electrónica

Manuel Pedro Freitas

Câmara de Lobos, sua gente, história e cultura